De Lima, partimos para Cusco,
originalmente "Qosqo", que em quéchua significa umbigo do mundo. Já
tinha ouvido muito sobre a cidade histórica, mas nada chegou aos pés do que encontrei.
A começar pela chegada que é surpreendente. Se você tem medo de avião, pule
este parágrafo. Se, porém, na sua lista de aventuras está incluída uma viagem aérea
“exótica”, chegou a hora.
A informação de que Cusco está
cravada em um vale, localizado no alto da cordilheira dos Andes, não quer dizer
nada até o momento em que o avião se aproxima da cidade e você inevitavelmente
constata que está a pouquíssimos metros das montanhas imensas. No auge da
adrenalina, contei cinco metros, mas pode haver variações. Muito mais empolgante
ou dramático, vai depender única e exclusivamente de você, é a inclinação do
avião durante a curva que ele realiza antes de avistar a pista. O arremate só
não foi perfeito porque a trilha do Indiana Jones não tocava no momento.
Cusco começou a ser inesquecível
antes de conhecê-la. No aeroporto de Lima, muito bem planejado, por sinal,
enquanto esperávamos pelo voo, tagarelávamos na fila com uma turma animadíssima
de senhores e senhoras canadenses. Ao lado de uma das mais animadas, estava uma
inglesinha de fala mansa, franzina, risonha, afetuosa e altruísta, pelo pouco
que soubemos dela. A senhora, muito provavelmente octogenária – evidente
que não cometemos a indelicadeza de certificar – é uma dessas figuras que rouba
nossa atenção instantaneamente.
Cortês e bem disposta, mesmo
depois de vinte e cinco horas entre voo e conexões, Eileen nos contou sobre
coisas que a faziam seguir mais radiante pela vida. Viajar pelo mundo, servir
ao próximo e curiosamente aprender português figuravam entre elas. Ao chegarmos
a Cusco, levamos Eileen ao hotel antes de nos instalarmos no nosso. Durante o
trajeto, nos apaixonamos de vez por ela. Aquela inglesinha, absolutamente
simples e desprendida, era não somente Ph.D em matemática, pela Universidade de
Cambridge, onde lecionava, mas uma das maiores pensadoras nessa área. Naquela
mulher eu senti que havia muito do que cada dia mais falta ao mundo: generosidade,
sabedoria, humildade e delicadeza. Enfim, em Cusco.
No hotel, nosso primeiro contato
foi com o chá de folhas de coca, mais consumido nos Andes do que café, em
função da altitude vertiginosa de 3.360 metros do nível do mar. Antes que a
cabeça pesasse, o ar virasse artigo de luxo e as pernas dessem sinal de cansaço
irrefutável, descansamos por três longas horas. Dali em diante nossa missão era
a um tempo despretensiosa e divertida: perambular pela cidade sem guia nem roteiro.
Estava extasiada por poder
usufruir daquele poema secreto, do escuro dos cantos e vielas, das construções
espanholas sobre ruínas incaicas, dos pequenos detalhes, dos encontros
fortuitos de gente de todo canto do planeta, do recolhimento de quem encerrava
o dia, dos vultos de quem seguia com pressa, dos olhares inquietos dos nativos,
do silêncio de quem admirava a resplandecência imponente da Plaza de Armas. Minha alma
estava nutrida. Encerramos a noite no pátio do hotel, ao som de um violino que
reverberava magistralmente pelo edifício, do séc. XVI, com ar de mosteiro. Tudo
tão calmo, bucólico e sublime que suspeito que tenha sido irreal.
No dia seguinte, parecíamos
incansáveis para a maratona. Impressão que durou até eu me atinar para as
ladeiras que eu deveria praticamente escalar para chegar a Sacsayhuaman, um dos
mais imponentes monumentos incaicos, edificado nos tempos do Inca Pachacutec,
ao redor de 1460, para proteger a cidade contra invasores. Enquanto
percorríamos os enormes baluartes em forma de zigue-zague, uma situação inusitada.
Com pinta de não sei o quê, fomos abordados por um grupo de cerca de cinquenta
estudantes do interior do Peru. Todos, sem exceção, pediram para tirar foto
conosco. Duvido que Angelina e Brad possam se gabar do mesmo feito em plenas
ruínas de Sacsayhuaman.
Brincadeiras à parte, há passeios
imperdíveis por toda a cidade. É imperdoável, por exemplo, que você não gaste
boas horas visitando o Templo Inca do Sol ou Koricancha, onde sobre as bases do
que restou do principal templo dos incas, foi construído pelos dominicanos o
belíssimo convento Santo Domingo. Apesar da destruição e do saqueio dos
espanhóis, os templos que restaram, que eram dedicados à adoração do trono e do
arco-íris, valem todas as caras pasmadas. Não é exagero dizer que a lapidação de pedras tenha virado arte nas
mãos dos incas. Se você for apaixonado pelas pinturas da Escola Cuzquenha, mistura do barroco europeu com a arte andina, a alegria será completa. Há instalações no convento que abrigam algumas dessas relíquias.
Localizada na Plaza de Armas, a
Catedral de Cusco levou mais de cem anos para ficar pronta. Construída sobre o
palácio do inca Wiracocha, a catedral guarda uma curiosidade, no mínimo, provocadora.
Ao invés do pão de Leonardo da Vinci, a “Última Ceia”, representada na
catedral, exibe um suculento cuy, porquinho-da-índia muito apreciado pelos
incas séculos atrás. Segundo os historiadores, essa, digamos, adaptação foi a
maneira que os indígenas que trabalhavam na construção encontraram para deixar
a sua marca. Da Vinci e os espanhóis jamais esperavam por essa. Em matéria de
museus, recomendo os didáticos Inka e o de Arte Pré-Colombiana, este último com ótimas
salas temáticas das culturas nazca, mochica, huari, chimú, chancay e inca. Isto
não é tudo e diante do que há em Cusco, está longe de sobrecarregar seu
itinerário.
A cidade funciona de um jeito
artesanal, com dias que atravessam de maneira harmoniosa e contemplativa, na
mesma cadência com que passeiam as mulheres com trajes típicos em
companhia de suas lhamas. Há um jeito de conhecê-la e não se trata de nenhum
clichê: perder-se por ela. Seu cenário em estilo colonial combina dezenas de igrejas,
praças, templos, palácios construídos em pedras milenares, fortalezas
históricas, lojinhas mil de artesanato, sobrados senhoriais, hotéis, lojas de
produtos de prata e roupas de pelo de alpaca, restaurantes – tudo para se
percorrer a pé.
Pausa só deve ser consentida se,
claro, for para comer. Em Cusco, experimentamos desde o afamado porquinho-da-índia até o
talharim negro com camarões do excepcional restaurante Cicciolina. Como se vê,
Cusco é bem mais do que uma parada para quem segue até Machu Picchu. Che
Guevara, em seu diário de viagem pela América Latina, escreveu: "É uma
cidade evocativa. Uma poeira impalpável de outras épocas cobre as ruas de
Cusco". Não satisfeita, há poesia por toda parte.