quinta-feira, 28 de março de 2013

Curva(se)


 
 
É noite no dia.
A escuridão estende-se e lá fora cheira à flor de medo
- aflitos, pungentes, trágicos
Todos.

Como fugir ao mínimo objeto e aos passos e a dor no escuro
- indiferentes.
O embrulho é tão frio.
Sonhos de muletas.
Tempo de espera, maus poemas, crimes suaves.
Desejos que se refugiam e desaparecem na curva do tempo.

Em vão
- tudo.

O sentido quer apenas explodir.

É só o abismo de cada dia – vivo, pequenino, calado.

Abrace as coisas sem reduzi-las.
É hora de compaixão.
 
 
Renata Gonçalves




terça-feira, 12 de março de 2013

Aos trinta, com amor


Belo Horizonte, 12 de março de 2013.


 
 


Querida Vó Zeli,


De onde estiver, a senhora deve saber que nunca estive tão bem, não é? Estou chegando aos trinta com uma gratidão que não cabe em mim. No geral, me sinto orgulhosa do que plantei até agora. O melhor dessa idade, Vó, talvez seja o fato de já conseguir colher e estar atento ao sentido mais profundo das coisas. A ansiedade incontida dos vinte e poucos se mostra arrefecida. Sinto-me mais forte e dez milhões de vezes mais seletiva. É bom e ruim, depende da medida, claro. Desperdiço menos, sob todos os pontos de vista, mas arrisco menos também. Ainda não pulei do maior bungee jump do mundo e para você eu confesso, pela primeira vez, que agora passei a ter medo disso.

Dias atrás, li em algum canto que "o segredo de uma vida plena é se reinventar". Vó, isso é bonito, mas muito doloroso. Nos últimos cinco anos, me reinventei tanto e me cansei tanto também que, de presente pelos trinta, peço sossego. Quer dizer, mais sossego. Fernando Sabino disse a Mário de Andrade, certa vez, que o que há de mais melancólico em tudo é a gente saber que a mocidade vai acabar. Embora seja triste, não me espanta. Muito do que fui já não sei se ainda sou. Talvez, não. E talvez seja natural que eu não seja. Nessa loucura toda de se reinventar, me pergunto se mudei muito ou se, inconscientemente, estou me reaproximando da minha essência. Sartre dizia que mudava para continuar o mesmo. Loucura mesmo é mergulhar naquilo que Nietzsche pregou como o eterno retorno. Um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido?

Acho que diferentemente de Harry, de "O lobo da estepe", livro que de algum modo subverteu minha estrutura psíquica, fui levada a estar contente comigo mesma e com minha própria vida, dentro da qual permiti (ou permitiram) que o homem e o lobo andassem juntos. Vó, apesar do pai defender que todas as cartas estejam marcadas, ainda acredito que eu esteja inventando meu caminho. Para mim, crer nisso diariamente significa minha pílula de redenção. Tive de ajustar muitas rotas, você sabe, e sonhar outros sonhos, mas permaneço disposta a viver por eles.

Nunca estive tão próxima dos meus amigos. Aos trinta, com mais recordações em comum, os encontros são mais fraternos e divertidos, mesmo que a ligação com alguns seja mais forte pelo passado do que o presente. Vó, acho que hoje tenho menos convicções e, tristemente, bem menos esperança na humanidade. Tenho medo de trazer filhos ao mundo, apesar de estar convicta de que não me perdoaria por não trazê-los. Reconciliada comigo mesma, encontrei um homem, com o qual – por entre luzes e sombras – vivo o que sempre necessitei em matéria de amor. Descobrir o outro para descobrir-se, esta é a travessia.

Aos trinta, Vó, fuço menos as gavetas dos outros. Aos poucos, muitas das minhas vão deixando de ser lugares intocáveis. Algumas, já sem trancas, permitiram encerrar e dar início a outras histórias. Algumas continuam sob sete chaves, mas não as trato como lugares piedosos, onde os incômodos estarão a salvo. Ao contrário, meu desejo, quando estiver pronta, é dissecar um a um, os expondo de forma honesta na praça pública do meu (in)consciente. Por tudo isso, tenho sido uma ótima companhia a mim mesma, com direito a discursos, a champagnes, a mimos e a uma dose muito madura de generosidade, sobretudo, com o que ainda não consigo ser.

Vó, obrigada por mim, obrigada por nós, obrigada pelo amor vivido em sua plenitude.

 
De sua neta Renata, com profunda gratidão.
 
 
 
Renata Gonçalves

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Uma viagem extraordinária pelo país dos incas – 2ª Parte


 
De Lima, partimos para Cusco, originalmente "Qosqo", que em quéchua significa umbigo do mundo. Já tinha ouvido muito sobre a cidade histórica, mas nada chegou aos pés do que encontrei. A começar pela chegada que é surpreendente. Se você tem medo de avião, pule este parágrafo. Se, porém, na sua lista de aventuras está incluída uma viagem aérea “exótica”, chegou a hora.
A informação de que Cusco está cravada em um vale, localizado no alto da cordilheira dos Andes, não quer dizer nada até o momento em que o avião se aproxima da cidade e você inevitavelmente constata que está a pouquíssimos metros das montanhas imensas. No auge da adrenalina, contei cinco metros, mas pode haver variações. Muito mais empolgante ou dramático, vai depender única e exclusivamente de você, é a inclinação do avião durante a curva que ele realiza antes de avistar a pista. O arremate só não foi perfeito porque a trilha do Indiana Jones não tocava no momento.
Cusco começou a ser inesquecível antes de conhecê-la. No aeroporto de Lima, muito bem planejado, por sinal, enquanto esperávamos pelo voo, tagarelávamos na fila com uma turma animadíssima de senhores e senhoras canadenses. Ao lado de uma das mais animadas, estava uma inglesinha de fala mansa, franzina, risonha, afetuosa e altruísta, pelo pouco que soubemos dela. A senhora, muito provavelmente octogenária – evidente que não cometemos a indelicadeza de certificar – é uma dessas figuras que rouba nossa atenção instantaneamente.
 
 
Cortês e bem disposta, mesmo depois de vinte e cinco horas entre voo e conexões, Eileen nos contou sobre coisas que a faziam seguir mais radiante pela vida. Viajar pelo mundo, servir ao próximo e curiosamente aprender português figuravam entre elas. Ao chegarmos a Cusco, levamos Eileen ao hotel antes de nos instalarmos no nosso. Durante o trajeto, nos apaixonamos de vez por ela. Aquela inglesinha, absolutamente simples e desprendida, era não somente Ph.D em matemática, pela Universidade de Cambridge, onde lecionava, mas uma das maiores pensadoras nessa área. Naquela mulher eu senti que havia muito do que cada dia mais falta ao mundo: generosidade, sabedoria, humildade e delicadeza. Enfim, em Cusco.
No hotel, nosso primeiro contato foi com o chá de folhas de coca, mais consumido nos Andes do que café, em função da altitude vertiginosa de 3.360 metros do nível do mar. Antes que a cabeça pesasse, o ar virasse artigo de luxo e as pernas dessem sinal de cansaço irrefutável, descansamos por três longas horas. Dali em diante nossa missão era a um tempo despretensiosa e divertida: perambular pela cidade sem guia nem roteiro.
 
 
Estava extasiada por poder usufruir daquele poema secreto, do escuro dos cantos e vielas, das construções espanholas sobre ruínas incaicas, dos pequenos detalhes, dos encontros fortuitos de gente de todo canto do planeta, do recolhimento de quem encerrava o dia, dos vultos de quem seguia com pressa, dos olhares inquietos dos nativos, do silêncio de quem admirava a resplandecência imponente da Plaza de Armas. Minha alma estava nutrida. Encerramos a noite no pátio do hotel, ao som de um violino que reverberava magistralmente pelo edifício, do séc. XVI, com ar de mosteiro. Tudo tão calmo, bucólico e sublime que suspeito que tenha sido irreal.
 
 
No dia seguinte, parecíamos incansáveis para a maratona. Impressão que durou até eu me atinar para as ladeiras que eu deveria praticamente escalar para chegar a Sacsayhuaman, um dos mais imponentes monumentos incaicos, edificado nos tempos do Inca Pachacutec, ao redor de 1460, para proteger a cidade contra invasores. Enquanto percorríamos os enormes baluartes em forma de zigue-zague, uma situação inusitada. Com pinta de não sei o quê, fomos abordados por um grupo de cerca de cinquenta estudantes do interior do Peru. Todos, sem exceção, pediram para tirar foto conosco. Duvido que Angelina e Brad possam se gabar do mesmo feito em plenas ruínas de Sacsayhuaman.
 
 
Brincadeiras à parte, há passeios imperdíveis por toda a cidade. É imperdoável, por exemplo, que você não gaste boas horas visitando o Templo Inca do Sol ou Koricancha, onde sobre as bases do que restou do principal templo dos incas, foi construído pelos dominicanos o belíssimo convento Santo Domingo. Apesar da destruição e do saqueio dos espanhóis, os templos que restaram, que eram dedicados à adoração do trono e do arco-íris, valem todas as caras pasmadas. Não é exagero dizer que a lapidação de pedras tenha virado arte nas mãos dos incas. Se você for apaixonado pelas pinturas da Escola Cuzquenha, mistura do barroco europeu com a arte andina, a alegria será completa. Há instalações no convento que abrigam algumas dessas relíquias.
 
 
Localizada na Plaza de Armas, a Catedral de Cusco levou mais de cem anos para ficar pronta. Construída sobre o palácio do inca Wiracocha, a catedral guarda uma curiosidade, no mínimo, provocadora. Ao invés do pão de Leonardo da Vinci, a “Última Ceia”, representada na catedral, exibe um suculento cuy, porquinho-da-índia muito apreciado pelos incas séculos atrás. Segundo os historiadores, essa, digamos, adaptação foi a maneira que os indígenas que trabalhavam na construção encontraram para deixar a sua marca. Da Vinci e os espanhóis jamais esperavam por essa. Em matéria de museus, recomendo os didáticos Inka e o de Arte Pré-Colombiana, este último com ótimas salas temáticas das culturas nazca, mochica, huari, chimú, chancay e inca. Isto não é tudo e diante do que há em Cusco, está longe de sobrecarregar seu itinerário.
 
A cidade funciona de um jeito artesanal, com dias que atravessam de maneira harmoniosa e contemplativa, na mesma cadência com que passeiam as mulheres com trajes típicos em companhia de suas lhamas. Há um jeito de conhecê-la e não se trata de nenhum clichê: perder-se por ela. Seu cenário em estilo colonial combina dezenas de igrejas, praças, templos, palácios construídos em pedras milenares, fortalezas históricas, lojinhas mil de artesanato, sobrados senhoriais, hotéis, lojas de produtos de prata e roupas de pelo de alpaca, restaurantes – tudo para se percorrer a pé.
Pausa só deve ser consentida se, claro, for para comer. Em Cusco, experimentamos desde o afamado porquinho-da-índia até o talharim negro com camarões do excepcional restaurante Cicciolina. Como se vê, Cusco é bem mais do que uma parada para quem segue até Machu Picchu. Che Guevara, em seu diário de viagem pela América Latina, escreveu: "É uma cidade evocativa. Uma poeira impalpável de outras épocas cobre as ruas de Cusco". Não satisfeita, há poesia por toda parte.
 
 
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Onde ficar
 
Hotel Novotel – Calle San Augustin, 239, Cusco
 
 
Onde comer
 
Baco – Calle Ruinas, 465, Cusco
Calle del Medio – Plaza de Armas, 113, Cusco
Cicciolina – Calle Triunfo, 393, 2nd floor, Cusco
Limo Cocina Peruana – Portal de Carnes, 236, Piso 2, Plaza de Armas, Cusco
 
 
Renata Gonçalves

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Uma viagem extraordinária pelo país dos incas – 1ª Parte

Minha viagem ao Peru começou há exatos 16 anos. Com 13, eu era a adolescente mais abelhuda da face da terra. Pelo menos essa era a opinião da minha mãe. Também aos 13, entre outras peripécias, tramei escondido um intercâmbio para a África do Sul, me matriculei numa escola de teatro, escrevi um livro, plantei um pé de cebolinha e outro de alecrim e, finalmente, fiz um roteiro rumo a Machu Picchu com direito, evidentemente, ao Trem da Morte.
 
Para o meu total desespero, nada disso vingou, com exceção dos pés de cebolinha e alecrim que cresceram, reproduziram e morreram. Tristezas e muitas risadas à parte, Machu Picchu nunca saiu dos sonhos (o Trem da Morte, sim) e lá fui eu, em novembro do ano passado, rumo a uma das viagens mais incríveis e aguardadas de toda a minha vida.
 
Em Lima, ficamos por três dias. Foi razoavelmente tranquilo encontrar encantos na capital peruana, sobretudo, porque eu não tinha a menor expectativa de aterrissar numa cidade que para mim ficasse marcada pela beleza. Quer dizer, saí do Brasil, sim, com duas grandes expectativas: morrer de amores por Machu Picchu e comer muito e divinamente bem. Dito e feito. Com expectativas superadas e memórias que ganharam o direito de caminhar comigo até o fim, vamos a alguns relatos que talvez faça você (re)considerar a possibilidade de uma visita ao país dos incas na primeira oportunidade.
 
Lima é muito mais estranha do que você possa imaginar. Não chove forte na cidade há 41 anos – no máximo uma garoa no inverno para lembrar que você não está em outro planeta. Por isso, não há calhas nem bueiros. Nublada, quase sempre nublada, é praticamente impossível acreditar que você possa dispensar o guarda-chuva despreocupadamente. Segundo a Susie, guia simpática que nos recebeu no aeroporto, isso acontece porque existe uma corrente marítima que impede que as nuvens cheguem até Lima.
 
 
A névoa que encobre a cidade só se dissipa quando o sol está alto. Não é sempre. Lima tem as águas mais frias do Pacífico e é mais cinza e marrom do que exatamente colorida. Tem mais cactos do que flores e buzinas numa quantidade tão desesperadora que você passa a prometer evolução imediata no seu trânsito de cada dia.

Se tudo isso fez você desistir de visitar Lima, eu lamento. Não se engane pela primeira impressão. A cidade cinza tem também uma das temperaturas mais agradáveis durante o ano – quase sempre na casa dos 20 graus. Moderna, limpa, segura e com moradores absolutamente amáveis. É de lá um dos centros históricos mais charmosos da América do Sul e um dos museus mais atraentes também, o Larco. Se as ruas parecem monocromáticas demais, o artesanato do país cuida de empolgar as pupilas com uma fartura de cores, no mínimo, impressionante. É o mais bonito de todos que já vi.

 
Se nada disso foi suficiente para te levar até Lima, duvido que assim permaneça se eu disser que a cidade é considerada a capital gastronômica da América do Sul. Se você é da turma que dispensa qualquer contagem de calorias assim que tranca o cadeado da última mala, Lima é o lugar.
 
A riqueza gastronômica não se limita a restaurantes sofisticados. Se você não padecer de frescura crônica, não deixe de experimentar os choclos, espécie de milhos gigantes, vendidos em barraquinhas em vários cantos da cidade. No Bar Cordano, Cantina do Lucas para os boêmios de lá, peça o lomo saltado, iscas de carne à moda chinesa com batatas (dizem que há mais de três mil tipos delas no Peru) e a base de ají amarillo, a pimenta mais utilizada pelos peruanos. Para acompanhar, uma Cusqueña bem gelada, a cerveja mais popular, e não menos saborosa do país. Se ao final, exagero for seu sobrenome, caminhe poucos metros até a Casa de Literatura Peruana e por lá (o pátio externo é muito agradável) fique até der vontade de comer de novo.
 
 
Nossa rotina em Lima foi mais ou menos essa. Pausa: fui com meu namorado, que entende de cozinha, garfo e senso de humor. Numa roupagem bem mais moderna de Comer, Rezar, Amar, lá estava eu viajando pelos sabores de uma cidade – só que bem resolvidíssima no amor. A nouvelle cuisine peruana, uma combinação de receitas tradicionais com inovações, é extraordinária, mas fiquei especialmente encantada pelos pratos mais simples, que respeitam os ingredientes e os deixam brilhar sozinhos.


O ceviche, por exemplo­, nada mais é do que um filé de peixe fresco, cozido apenas no limão, com cebola, pimentões e coentro. É de comer de joelhos o ceviche do Astrid & Gastón, restaurante de Gastón Acurio, que além de chef badalado internacionalmente, tem se mostrado um grande agente de práticas sustentáveis com projetos com pequenos agricultores e comunidades pobres de Lima. Por lá, há um sentimento de que os peruanos nasceram para a cozinha. Eu não duvido.

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Onde ficar:

Doubletree El Pardo Hotel – Independencia, 141, Miraflores

 
Onde comer:

Astrid & Gastón – Calle Cantuarias, 175, Miraflores
Central – Calle Santa Isabel, 376, Miraflores
Fiesta Chiclayo Gourmet Av. Reducto, 1278, Miraflores
La Rosa Náutica Espigón 4, Circuito de Playas, Miraflores
Rafael Osterling  San Martín, 300, Miraflores
Restaurante e Bar Cordano – Esquina Jr. Carabaya y Jr. Ancash, 202, Lima



Renata Gonçalves

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A bolsa e o sonho

Tudo começou por conta de uma bolsa xadrez de flanela. Era linda. Azul e vermelha, grande – muito antes da onda das maxi bolsas pegar as fashionistas (que nome purgante!) e as mortais, como eu. Tinha ainda por cima um laço azul nada óbvio que, claro, eu adorava. Foi com uma colega de trabalho que eu a vi pela primeira vez. E a pergunta que nós, mulheres, mais proferimos durante nossa existência foi o que encurtou meu caminho até ela. “- Onde você comprou?” Pronto, estava dada a largada para que o cosmo mexesse alguns bons pauzinhos.
 
Não havia loja onde eu pudesse comprá-la. Havia uma menina sonhadora que fazia bolsas lindas para quem quisesse usá-las. Sorte de quem a conhecia e podia encomendá-las. Sorte também de quem conhecia alguém que a conhecia e podia ter a encomenda terceirizada – meu caso. A bolsa chegou num embrulho cuidadoso, cheirando à alfazema, envolta em um papel de seda cor de rosa. Junto com ela, uma história que queria se conectar com a minha, de alguma forma.
 
Amanda, esse era o nome da dona das bolsas. Mudou-se do interior de Minas para Belo Horizonte, nesse caminho penoso que é sair do ninho. Formou-se publicitária e sonhava em fazer moda, antes de tudo, delicada. Numa dessas gozações da vida, foi trabalhar no marketing de um shopping. Sobre ela eu sabia apenas essa meia dúzia de histórias. E aquela bolsa simbolizava para mim a força da menina que sonhava em criar coisas bonitas, apesar da dureza de ter que, às vezes, seguir viagem em um trem que parece querer descarrilar a qualquer momento. Era o jeito de não se esquecer de que um dia poderia se trocar de trem, sentar à janela e apreciar a vista.
 
Dali a pouco tempo, eu também sairia em viagem. Talvez por isso estivesse mais sensível a histórias de gente corajosa, numa tentativa de não me sentir só com a minha loucura. A bem da verdade é que sempre tive uma queda por pessoas com ideologia e, normalmente, meus heróis não morrem de overdose. Assim como Amanda, eu precisava proteger meus sonhos, talvez guardá-los na bolsa, e seguir adiante. Abafada até pelas montanhas que insistiam em proteger, eu queria odiar Belo Horizonte para assegurar que a partida fosse menos dolorosa.
 
Não foi. A Paulicéia me sugou feito areia movediça. Senhora vivida que era, ao notar meu estranhamento cada vez mais sofrido, logo se antecipou a me expulsar um pouco, todos os dias, até o fim. Algumas renúncias são atos de coragem também. Voltei, parti em outra viagem mais curta e fiz de novo o caminho da volta. Na bolsa, alguns sonhos, ainda intactos. Nesse meio tempo, Amanda se preparava também para ajustar a rota de sua viagem. Havia chegado a hora de fazer moda, antes de tudo, delicada.
 
Há pouco mais de um ano, nos encontramos, pela primeira vez. Não chegávamos, nem partíamos, apenas revisitávamos nossas raízes, talvez para partir de novo um dia, por que não. Amanda havia se tornado estilista. Criava poemas para serem vestidos. Eu estava experimentando redescobrir a cidade, os amigos, a família, o amor, os hábitos e a vocação. Há poucos dias, num encontro com a menina sonhadora da bolsa xadrez de flanela, me dei conta de que entre a bolsa e o vestido, o pacto de uma nova vida foi cumprido – por ambas. Ali, naquele momento, sentamos à janela e apreciamos a vista, encantadas.
 
 
Renata Gonçalves

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Comunicação: ainda um artigo de luxo?

 
Nos manuais sobre liderança, estratégia e gestão, um dos pontos mais lidos e relidos diz respeito às habilidades interpessoais, que, por sua vez, trata a comunicação, senão como o principal pilar, um dos fundamentais. No âmbito empresarial, parece que finalmente quem se enquadra no que se convencionou como algo do tipo “comunicação é terra de ninguém” está com os dias contados.
 
Vedete da vez, a comunicação extrapolou seu próprio fim, ou seja, tornar algo comum a muitos – do latim “communicatio de communis”. Hoje, ela representa um mundo surpreendente de possibilidades. Se ainda há dúvida, atente-se para o fato de que foram produzidos cinco hexabytes de conteúdo em 2002, a mesma quantidade gerada entre 25.000 a.C. e 2.000 d.C.. Inacreditável, não?
 
Comunicação é tudo? Talvez seja quase. É algo fácil? Longe disso, afinal, pressupõe-se que comunicar constitui-se de forma a ir além da ação da fala. Palavras contextualizadas, tom e velocidade adequados, atenção com quem está recebendo a mensagem, e linguagem corporal convincente sinalizam para uma comunicação bem-sucedida, mas ainda assim pode não ser o suficiente.
 
O cenário corporativo globalizado, que traduz bem as mudanças cada vez mais aceleradas do mundo, tem nos mostrado que a boa comunicação pode ser uma arma infalível para a tecnologia que avança, a interação entre diferentes gerações, os modelos de negócios que se diversificam, e para os muitos tipos de líderes que se proliferam – tudo, claro, veloz demais.

 
Sabe-se que manuais de boas práticas são incapazes de garantir o sucesso de uma comunicação. No entanto, se existe uma ação que possa minimizar as chances de fracasso, essa certamente atende-se pelo nome de planejamento. Pode parecer inacreditável, mas planejar a informação com base no interlocutor da mensagem, com o apelo correto e por meio dos canais adequados ainda não é a prática mais recorrente. Por várias razões, entre as quais, pelo fato de que essa ação demanda tempo e conhecimento, exige processos e responsabilidades bem definidos, e porque necessita do comprometimento da alta gestão.
 
Ainda que seguida a cartilha tal qual mande o figurino, a comunicação, por existir a partir da interação com o outro, continua a nos pregar peças. Aliás, não depende somente da forma como a mensagem foi transmitida, sua compreensão tem de ser vista como fundamental. O que parece óbvio para um interlocutor, para outro pode estar longe de ser.
 
Apesar de mudanças tão profundas na forma de se comunicar, sobretudo em função do surgimento das redes sociais, falar, divulgar, atrair, fidelizar e inspirar, isso continua sendo segredo para muitos. Em grande parte, porque há de se ter coerência, empatia e generosidade, características pessoais desejadas desde o tempo em que iniciamos a compreensão do mundo, por acaso, milhares de anos antes da criação da Internet.
 
 
Renata Gonçalves

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Impressões sobre o fim do ano

Quando criança fiquei encantada com uma árvore de natal que eu avistava do alto da escada da lateral de casa. Dentro da minha história, ela era gigante, imperecível, abarrotada de luzes e, numa realidade totalmente inventada, estava há léguas de distância de onde eu a via – o que, aos olhos infantis, a tornava muito mais interessante. De tão mágica, chegava a duvidar se era real. Não muitos anos mais tarde, meu pai me levou até ela e tamanha foi minha decepção ao descobri-la fascinante apenas na minha imaginação. Por sorte, a magia já havia se instaurado e norteado a minha lembrança.
 
 
Com Papai Noel minha relação nunca foi das melhores, embora eu gostasse muito do mistério que protegia sua existência e suas chegadas pelas chaminés, ainda que também inventadas. O bom velhinho – há controvérsias! – passava em casa justo nos primeiros minutos do meu sono. Um pouco antes da meia-noite, quase sempre. No dia seguinte, como se não fosse a coisa mais cruel do mundo, vinha a famigerada notícia: “- Papai Noel passou aqui logo depois que você foi dormir!”. Só não perdia mais tempo tentando compreender a malvadeza do Noel por um só motivo: sim, precisava abrir meus presentes.
 
Se a Árvore de Natal, que na realidade não era a dos sonhos, e Papai Noel, que nunca quis me encarar pra valer, me apresentaram o gosto amargo da frustração, todo o resto vinha embrulhado em papel brilhante, fitas vermelhas, e esperança, muita esperança. Junto dela uma civilidade que facilitava os sorrisos nos rostos mais improváveis, os pedidos de desculpas entalados na garganta e no orgulho, os abraços até então contidos, os encontros não vividos, e os agradecimentos, coadjuvantes, muitas das vezes.
 
 
Hoje, adulta, tenho a sensação de que no fim do ano nos possibilitamos algumas tréguas e, de forma a amenizar o que não deu tão certo nos outros meses, experimentamos alguma dose de condescendência. De algum Natal de muitos anos atrás vem a cena que me faz pensar assim. De um lado meu avô materno, que era um homem de pouquíssimas palavras e raríssimos sorrisos, do outro eu apertando o play da minha boneca que, no papel de mãe, embalava sua filha em um berço, com direito a trilha de ninar. Não haverá nada que apague da memória a gargalhada vigorosa daquele avô, tantas vezes bronco, enternecido pela boneca progenitora e pela neta que o lembrava, sem perceber, que era tempo de se permitir.
 
Por outro lado, o fim do ano revela o que não demos conta no restante dele ou dos anteriores. Funciona mais ou menos como uma vassoura que encosta na ponta do tapete, o levanta e nos obriga a conferir o que ainda não foi varrido para fora dele. A boa notícia é que, atormentados ou não pela poeira que não limpamos, seremos lançados a 365 novas folhas de calendário, que podem representar um número consolador de oportunidades.
 
 
Carregados de promessas e empenho, os últimos dias do ano nos colocam em contato, de forma intensiva, com o princípio da nossa dualidade; o Yin Yang na filosofia chinesa. Luz e sombra, frustração e conquista, apatia e superação, amor e egoísmo, renúncia e doação. Um tempo para nos redimirmos, sobretudo, com nós mesmos e criarmos novos sentidos para perdermos logo adiante – e a vida não é isso?

É no reconhecimento da nossa imperfeição que produzimos o melhor que podemos ser. Inventar uma nova vida a cada final de ano continua sendo o nosso maior grito de esperança.
 
Feliz nova vida. Feliz 2013.
 
 
Renata Gonçalves